Projeto da fotógrafa Ana Clara Costa quer transformar brechó da dona Olinda em patrimônio histórico de Florianópolis
Quem passar pelo TICEN até o dia 27 de agosto vai poder conferir a exposição Brechó Brasil, uma mostra itinerante que leva aos terminais de ônibus da Capital uma série fotográfica sobre a dona Olinda Brasil, proprietária de um brechó único na rua General Bittencourt, Centro de Florianópolis. O projeto, da fotógrafa Ana Clara Costa, do curador Lucas Tirelli e da produtora N47, ainda vai passar pelo TIRIO e pelo TICAN até o dia 25 de setembro.
Olinda Aparecida Guedes Brasil tem 64 anos, trabalhou como manicure, cabeleireira e depiladora e abriu seu próprio salão de beleza em sua casa: o Centro de Beleza Brasil. Hoje, doze anos depois, continua vivendo na mesma casa antiga de construção açoriana, no Centro Histórico. Colocou um toldo rosa na porta de casa escrito “Brechó” em letras vermelhas e é ali que ela apresenta e vende roupas, acessórios, itens de decoração e outros cacarecos coletados na última década. É um brechó raiz mesmo, daqueles que para encontrar tesouros escondidos é preciso ir com tempo. Ana Clara conheceu o brechó e a dona Olinda em 2021, em um dia que buscava um local que aceitasse roupas para doação.
“O local me chamou atenção logo de cara pela infinidade de coisas que enchem os olhos, tudo combinava sem querer. Comecei então a fotografar as esculturas de “bagunça” que eu via com minha CyberShot, uma câmera super leve que me permite estar mais imersa e focada no objeto fotografado. As fotos tremidas, “mal enquadradas”, com baixa resolução ou sem foco, fazem parte da linguagem que a arqueologia da câmera CyberShot permite como opção estética, trazendo uma cacofonia imagética que faz parte de um esforço para alcançar o realismo mimético da parte humana dentro da fotografia, que é o “erro”, ou o acaso”, explica a fotógrafa.

Um dia, dona Olinda contou à fotógrafa que tinha feito uma promessa: ia se livrar de tudo que tinha ali, algo que ela terá que fazer inevitavelmente quando a dona da casa falecer, pois os filhos pretendem transformar o terreno em um estacionamento. A história chamou ainda mais a atenção de Ana Clara, que ficou comovida e acabou encontrando em seus próprios registros um modo de falar sobre hábitos de consumo e descarte compulsivo.
“Senti que a cidade estaria perdendo um registro importante dos nossos hábitos de consumo, é como se um museu fosse demolido. Vimos nessa ideia um projeto cultural com um grande potencial, e decidimos inscrevê-lo no Edital Elisabete Anderle, na tentativa de ajudar a dona Olinda com a sua promessa e salvar seu acervo de vidas”.
Assim como a proprietária do brechó, Ana Clara se considera também uma “coletora do mundo” – só que, ao invés de usar as mãos, ela usa os olhos por meio da fotografia. A questão do cuidado com o consumo exagerado e o descarte das coisas também faz parte da trajetória da fotógrafa – a mãe de Ana Clara era estilista e costumava fazer as roupas da filha, que também herdava peças de outros familiares. Desde criança, ela também tem o costume de manter diários onde fazia colagens com aquilo que havia marcado o seu dia, como guardados, pedras, folhas, cartões, flores, stickers da rua, cartões de visita, provas da escola, fotos e até palito de picolé.
“Eu nunca quis esquecer o sentimento que eu tinha de estar vivendo as coisas que eu vivi, e eu acabei me tornando uma viciada em saudades. Hoje, mais tarde na vida, faço da câmera uma extensão dos meus olhos, e do cinema uma ferramenta para guardar a vida”, diz.

Com as visitas frequentes ao brechó por conta do projeto, a relação das duas foi se fortalecendo. Se antes dona Olinda era pontual em suas falas, depois ela passou a se abrir e a conversar. Apesar da exposição mostrar seu trabalho e sua história, ela não aparece nas imagens – as fotos falam sobre pessoas sem mostrar nenhuma porque, para a fotógrafa, objetos são feitos para completar a ação dos corpos.
“Aos poucos, fui cultivando uma relação de afeto com o local e a dona Olinda. Hoje tenho a honra de falar que a considero uma amiga – de vez em quando fico lá observando e participando do movimento do brechó, ouço as fofocas dos clientes, conversamos sobre a vida, tomamos uma vitamina de banana e maçã juntas… Olinda me ensinou muito, várias vezes sem dizer uma só palavra”, completa.

Exposição segue até o dia 25 de setembro no TIRIO e TICAN e é pontapé inicial na consolidação do Brechó de dona Olinda como um patrimônio histórico de Florianópolis
A partir do dia 29 de agosto, a Exposição Brechó Brasil estará no TIRIO, no Sul da Ilha. Depois, de 12 a 25 de setembro, no TICAN. Em todos os terminais, há um ponto de coleta de roupas e objetos em bom estado para doação. A ideia de expor em lugares públicos vem do desejo de disponibilizar o acesso à cultura a pessoas que normalmente não chegam nos espaços expositivos tradicionais.
“Acreditamos que arte é feita para ser vista, a arte faz fazer. Recebemos um depoimento de um homem trabalhador na casa dos 40 anos que se emocionou com uma das fotografias porque o lembrou da sua casa de infância, em Pernambuco, seus olhos chegaram à marejar e ele nos agradeceu pela iniciativa. Recebemos muitos outros depoimentos de funcionários e pessoas que não teriam tido a disponibilidade ou a vontade de ir até um espaço de exposição tradicional para entrar em contato com as fotos, mas que nos agradeceram muito por trazê-las até eles. E acho que tocar alguém é a maior recompensa que algum artista pode receber na vida”, finaliza Ana Clara.
O objetivo é que a exposição seja o pontapé inicial na consolidação do Brechó de dona Olinda como um patrimônio histórico de Florianópolis. Em 2023, se contemplada em novo edital, a mostra deve passar nos terminais remanescentes (TILAG, TISAN e TITRI). A equipe também escreveu um projeto de roteiro de documentário sobre o brechó, que está pleiteando financiamento público. A ideia é que o serviço que a dona Olinda faz seja tombado como um patrimônio imaterial da cidade, e institucionalizar essa prática por meio da criação de um brechó comunitário da cidade.