Lançado em abril, filme da cineasta Letícia Marques ganha um novo significado em tempos pandêmicos
Um road movie a pé, um convite ao andar pelas ruas, permitindo encontros com pessoas, lugares e histórias que os permeiam, tendo como cenário o Centro Leste de uma cidade-ilha no Sul do Brasil. Esta é a sinopse de Há um lugar que eu quero te levar, curta documentário da cineasta Letícia Marques que registra a vida dessa região do Centro de Florianópolis em um momento pós-Bolsonaro e pré-pandemia. Apesar de ter sido lançado oficialmente em abril, o filme ganha novos significados em tempos de quarentena, com cenas de todo o movimento urbano que rolava no local, além de imagens que deixam saudades de espaços que fecharam as portas nos últimos meses, como o Tralharia e o Taliesyn.
Frequentadora daquela área do Centro Histórico, Letícia teve a ideia de fazer um filme-passeio sobre a região entre março e abril de 2019.
“A configuração do Centro Leste me pareceu muito cinematográfica, cada enquadramento dos lugares me lembrava uma fotografia de paisagem, além de eles se conectarem organicamente através de uma caminhada. Ao meu ver, é como se toda aquela região tivesse cenários prontos para serem filmados. E eu queria fazer um filme sobre um lugar e encontros, que tivesse como personagem as ruas, e o Centro se configurou quase que magicamente. E nesse processo todo eu encontrei a música Levitation da banda Beach House, que tem um trecho no qual a Victoria Legrand canta “There’s a place I want to take you”, que me inspirou enquanto escrevia o projeto e se tornou então o título do filme”, explica a cineasta.
No filme, os frequentadores dos bares do Centro falam bastante sobre política. “Eu tava exatamente nessa mesa no dia do resultado das eleições (2018), e na hora do resultado foi um silêncio inexplicável. Eu simplesmente chorei horrores, ouvindo o silêncio dessa região enquanto lá na Beira-Mar os fogos estavam bombando”, emociona-se uma das mulheres entrevistadas. Letícia capta o sentimento das pessoas no Brasil pós-outubro de 2018 e mostra como as ruas foram ocupadas depois que o atual presidente assumiu o governo.
Assista:
“Quanto mais se instaurou uma força que gerava medo, ódio, divisão entre as pessoas e uma polarização por conta de uma política de extrema direita (e fascista), mais as pessoas procuravam as ruas do Centro Leste. Lá estavam elas, circulando entre os lugares. Algumas simplesmente queriam estar próximas de seus pares, outras ocupavam as ruas como forma de resistência e expressão artística. Como uma forma de pertencer diante da ameaça de um não pertencimento muito forte por conta da nova configuração política. Essa questão surgiu das conversas, e ao mesmo tempo eu li a ocupação das ruas como um desejo e vontade das pessoas se unirem, se amarem, se entenderem, se confortarem. Mas claro, é a minha interpretação subjetiva do que foi este movimento que tomou o Centro Leste.”, defende Letícia.
Essa proposta continua válida, mas o filme também ganhou uma importância diferente em tempos de quarentena, de não-encontros, de saudades e de vontades de estarmos juntos. É impossível não ficar triste ao ver as cenas do tradicional ponto de encontro Tralharia, que fechou as portas em maio, em noite de música, cerveja e mesas na rua. Ainda mais pioneiro em desbravar aquelas ruas do Centro, o Taliesyn também encerrou as atividades no número 112 da Victor Meirelles, mas com a promessa de voltar em novo endereço quando esse capítulo infeliz acabar.

Sem querer, Letícia acabou registrando momentos importantes e que não vão voltar – pelo menos não do mesmo jeito.
“Ao ver o filme novamente, sinto uma nostalgia e também uma vontade de sentar ali em uma mesa e tomar cerveja. Andar com um copo na mão e circular pelos lugares para ver o que está acontecendo. E vendo estas imagens hoje já sei que quando caminharmos novamente por lá não vamos mais ouvir os ruídos do rock ao fundo do Taliesyn e nem o blues ou o jazz do Tralharia. Os dois eram a musicalidade das ruas e isso é um pouco triste. Eu acho que o filme antes era somente sobre o pertencimento, sobre identidade cultural e local, sobre a permanência. Agora, ele toma um significado na ausência. Futuramente quero entender o que esses lugares que fecharam significam para as pessoas, para o Centro Leste e como isso vai afetar a identidade local. E perguntar no filme: Como o Centro se configura perante à pandemia? Espero que ainda tenha aquela energia vital, que a gente possa transitar de um lugar ao outro e encontrar pessoas ao acaso, que possibilite os velhos e novos encontros”, finaliza.