Projeto Poema na Caixa, de Dinovaldo Gilioli, começou no Córrego Grande e se espalha para outras regiões e cidades graças a parceiros

Desde janeiro de 2021, mais precisamente do dia 28, moradores do Córrego Grande vêm encontrando pequenos bilhetes poéticos em suas caixas de correio. Neles estão escritos poemas curtos de autoria de Dinovaldo Gilioli, escritor, poeta e ativista cultural, que mora no bairro há mais 30 anos, como este:

se fosse dizer
tudo que sinto
diria:
sinto muito

A iniciativa é parte do projeto Poema na Caixa, que surgiu durante as caminhadas de Gilioli pelo bairro, algo que ele nunca tinha feito. Apesar de ser novidade para quem mora na região, não é a primeira vez que ele espalha suas obras por aí:

“Sempre gostei de partilhar a palavra poética. Distribui na UFSC (pendurados em árvores) e, na Praça XV de Novembro (nos bancos e canteiros), cerca de 200 exemplares de um dos meus livros. Observando que a grande maioria das casas possuía caixas de correio, comecei a colocar poema nelas. Primeiramente imaginei uns 500, depois passou para mil e agora deve passar de 2 mil bilhetes poéticos. Chamo-os assim por serem, em sua maioria, poemas curtos”, conta.

O projeto está em execução, mas os poemas já foram distribuídos em centenas de ruas do bairro e algumas do Santa Mônica. Os textos fazem parte dos livros Cem Poemas (Editora da UFSC) e Inventário de Auroras (Costelas Felinas Editora). Já os temas são variados e surgem, geralmente, do olhar e da observação do cotidiano, das relações humanas e das leituras feitas pelo escritor.

de lírio
em lírio
delírios

Figura conhecida na cena cultural da Capital , Gilioli tem uma longa trajetória do mundo da literatura. Como sindicalista e ativista cultural, coordenou concursos de conto e poesia, entre outras atividades culturais promovidas pelo Sindicato dos Eletricitários de Florianópolis – Sinergia. É autor de sete livros e tem poemas em mais de 20 antologias. Publicou artigos em revistas e jornais, foi um dos editores da revista Pantanal, da Associação Elase, e ainda realizou, com os artistas plásticos Schneider e Marcelo Pagliarim, os projetos Arte e Poesia em Movimento e O Silêncio Arde, em SC, RS e PR. Com a bordadeira Olinda Evangelista elabora o projeto Transbordando Palavras, cuja exposição está prevista para outubro deste ano em Florianópolis.

poema na caixa
Bilhetes poéticos

Não é de se impressionar, portanto, que o projeto Poema na Caixa alçasse voos mais altos. Depois de divulgar a iniciativa em seu perfil no Facebook, algumas pessoas de fora do bairro se interessaram em receber os poemas. Gilioli fez contato e propôs a participação dessas pessoas no projeto com a distribuição dos bilhetes em suas próprias localidades. Hoje, além do Centro de Floripa, está no bairro Campeche e em Joinville. Seguiu também para Piracicaba e Tremembé, ambas em SP. O convite está aberto a qualquer pessoa, com as condições seguras de locomoção, que queira praticar o Poema na Caixa.

“O projeto parte de uma ideia simples e despojada. Objetivava, como disse, partilhar a palavra poética – algo que sempre gostei de fazer, inclusive em alguns saraus poéticos. A proposta era ficar só no bairro, devido ao formato que dá bastante trabalho. Os textos são todos escritos e coloridos à mão. Ou seja, é um processo totalmente artesanal. Aproveito agendas vencidas e cadernos escolares. E dá-lhe escrever, colorir, recortar… e depois botar nos bolsos e distribuir nas caminhadas. Não era a intenção, no entanto, o projeto expandiu porque algumas pessoas generosamente estão se dispondo a partilhar poemas por onde passam, o que me alegra muito”, explica.

o sol
nasce
para
toldos

O escritor já começou a receber retorno dos moradores que encontraram os bilhetes poéticos. Um dos primeiros retornos veio de um poeta também do bairro, Marco Vasques, que publicou no Facebook: “há tanto ódio sendo semeado e destilado nesse momento, que delicadezas nos espantam”.

“Recebi outros retornos de pessoas tocadas pelo gesto, parabenizando a iniciativa e expressando gratidão por ter recebido o poema. A interação é basicamente com a caixa postal e alguns cachorros (risos…). Quando saio para distribuir vou bem cedo, por volta das 6 da manhã. Isso é proposital, a ideia é justamente surpreender. Ao abrir a caixa postal, em que normalmente se recebe a conta de água e luz, quem sabe não se encontra um poema? A interação pode surgir depois, se a pessoa assim o desejar. Como algumas o fizeram e foi muito prazeroso”.

poema na caixa - dinovaldo gilioli
Arte: Fernanda Gilioli Oliveira

Para Gilioli, a poesia, a literatura em geral e outras formas de expressão artística são imprescindíveis para a humanidade em qualquer tempo e não é necessária uma pandemia para percebermos isso. Porém, por meio da distribuição de poemas, o escritor acredita poder acolher e abraçar as pessoas em tempos de isolamento.

“No entanto, paradoxalmente ou não, a arte – assim como a saúde pública, por meio do SUS – ganhou evidência nesse processo e ambos estão proporcionando alento. Quando se questiona para que serve a arte, me reporto à frase do filósofo alemão, Nietzsche: ‘a arte existe para que a realidade não nos destrua’. Nada mais atual me parece. Em época obscura, especialmente no Brasil onde, não fosse o negacionismo, o desprezo à ciência, ao conhecimento elaborado há séculos, muitas das mortes poderiam ter sido evitadas. Vidas foram ceifadas por conta dessa estupidez! Oxalá vislumbremos e continuemos agindo na perspectiva de um tempo de mais humanidade, de mais alma e de menos arma!”, finaliza.

 
amar-te
assim na terra
como em marte

 
rios navegam
em mim
sonhoceanos

 
no velho aquário
o peixe NADA
sabe sobre o mar
 

o galo pigarra
seu canto insólito
em cordas de sol
fiando a manhã

 
em notas musicais
la                            si
vão
meus ais


a estátua do herói
na praça se corrói

 
a razão do poema
está na pedra
que sela o silêncio
à espera do rio



sobre

O velho
(r)existe
das lembranças
que cata na rua

 
poema concreto
F      O      M       E
do  piso  ao  teto

 
larvas hibernam
: borboletas
não tardam